quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Sobre aplicativos

Que bom seria se a humanidade desafiasse a si mesma a construir um aplicativo que avaliasse o brilho nos olhos, o calor de um abraço ou a energia de um bom riso. E, daí, talvez, nessa busca infundada, a gente percebesse que não há avaliação. Não há porcaria nenhuma de classificação. Classificar é julgar e julgar não é um caminho, é um abismo.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Toque

Havia toques que conversavam. Raramente, uma vez que outra, os humanos, quando sinceros, sabiam ter toques puros, toques que conversavam lentamente, uma linguagem suave brotando do fino epitélio que os revestia. 
Esses humanos podiam ficar em silêncio, exalando notas belas, inaudíveis aos ouvidos brutos e quando estendiam as mãos até outro humano, tudo se tornava mais agradável, e o toque em meio à guerra podia trazer paz - pequenas fagulhas invisíveis de amor envolviam as criaturas.

As ciladas do mundo podiam ser amenizadas pelos toques que conversavam. A sabedoria jamais sucumbia quando transmitida ao tocar.
Havia humanos que, quando sinceros, sabiam ter toques puros.
Algumas vezes, o toque desencadeava o sorriso. Algumas vezes, o toque desencadeava o choro. Sorriso e choro, choro e riso, de entonação lírica.
Havia humanos que sabiam tocar.

Há.



segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Além do concreto

Não consigo esquecer os olhos daquele senhor, acamado, impossibilitado de falar, o tumor avançando silenciosa e rapidamente dentro da sua boca, o inchaço, o sangue que expelia. Os olhos eram urgentes, denunciavam, pediam socorro. As mãos agitadas gesticulavam mostrando-nos como era a dor: latejante.
Eu não sabia o que fazer enquanto ouvia a sua esposa. Relato de amor, e de sofrimento. Estou aqui com ele todos os minutos, dizia. Limitei-me ao silêncio, tomar notas parecia inadequado no momento embora assim sejamos ensinamos.
Uma filha chegou. Talvez tenha a minha idade, pensei enquanto ela beijava o pai na testa. O gesto aqueceu o quarto frio e úmido e aí tomei coragem e olhei dentro dos olhos do homem inundados pela luz violenta da manhã que entrava pela janela do quarto hospitalar. Seu olho claro estava tão cheio de luz que quase era possível mirar o invisível, dentro do corpo que se pode palpar, percutir, auscultar, o invisível intocável no âmago do tocável. Eu não soube no momento mas o olhar daquele senhor me fortaleceu naquela manhã fria de agosto. Há que se resistir.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

O sorriso de João

Olhar escasso. Olhar de quem consigo traz um peso calado. Olhos metálicos. Olhar de quem vê as coisas sem ênfase, sem surpresa, sem esperar por nada diferente. João é assim, com o andar cansado e indiferente, há anos sente como se não houvesse mais esperança. 
Só quando sobre o morro, no fim do dia e vê os netos pequenos acenando lá de cima, nesse momento, com fé, João dá um sorriso, sorriso meio que risada, explosivo.  Catarse.  Acena com as mãos enrugadas, respira fundo e ganha fôlego para chegar até o topo. O sorriso de João ao ver os netos é a única coisa que ainda não lhe tomaram.


domingo, 10 de fevereiro de 2013

'Cause Mama, Mama, I'm coming home


ao som de "Long Long Journey - Enya"


Retornar: também pode ser poesia. 
Volver: como texto em prosa que se organiza, repentinamente, em poesia. Intraduzível, revisitar (ainda que não seja Lisboa) revisitar é intraduzível.
Objetos, alguns novos, outros não vejo mais, pergunto-me onde estarão. Não estão mais, apenas. Como eu não estou mais (talvez). Os móveis costumavam ser meus, mas não são mais móveis. Lembranças em forma de madeira, madeira bruta. 
Nunca soube escrever poesia, e ainda assim estava pensando em uma poesia sobre a madeira bruta, bruta como a palavra que sai atropelando, garganta à fora.
Esboço algumas linhas, sentada na cama. Pedaços de mim estão nesse quarto e em vão tentaria juntá-los, se houvesse como. 
Mas sei que não é possível.
Fosse triste, fosse feliz. Qualquer sentimento ou possibilidade que fosse, não seria possível. Porque já tenho outras casas: quatro ou mais pontos difusos no céu e a distância que me faz crescer. 
Apenas é: percorrer, voltar e encontrar um pouco do que fui.
Já amanhece e o brilho azul-acinzentado do dia penetra no quarto, envolvendo a melancolia. Reverberação infindável de saudade, ecos de agradecimento: canção viva.
Fecha os olhos e descansa, pequena.
Hoje não é preciso verificar se a porta está trancada.
Porque hoje tu estás em casa.




terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

O dia em que vendi meu violão





O dia em que vendi meu violão

Entrego o violão na mão da menina. E fico ali parada, observo-a saltitante, feliz, com meu violão na mão e o mundo pela frente. Em poucos segundos, a menina dobra a esquina. Permaneço ali. Parada. Atônita. A menina se vai. O meu violão também. Vai ser feliz, pequena tola, penso, e o coração sangra.
Subo as escadas ofegante. Adentro exasperada no pequeno apartamento, escuro já, anunciando a noite. Caminho até a cama, sento, levanto. Vou até o pequeno fogão, coloco água na chaleira para aquecer. Quero fazer um chimarrão, um café, um chá. Qualquer coisa. Forte. Beberei quente e sentirei meu esôfago queimar. Sentirei qualquer coisa e qualquer coisa será melhor do que sentir esse vazio: o meu violão dobrou a esquina, nos braços de uma menina encantada.
Percebo que ainda estou com as notas de dinheiro amassadas na mão, aperto-as com determinação. Abro a mão, aliso-as. Pai, esse mês o senhor pode mandar menos dinheiro. Ao menos isso, murmuro. Alisar estas notas de dinheiro causam-me repugno. 
Rapidamente escondo-as sob o colchão. É sob o colchão que escondo as notas que sobram ao fim de cada mês. Assim que eu economizava quando jovem, dizia ele. A voz de meu pai ecoa na minha mente e a saudade faz duas gotas grossas e quentes brotarem de meus olhos. Foi no violão que dobrou a esquina há alguns minutos que meu pai ensinou-me os primeiros acordes.
Já quis tocar, compor, cantar. Imaginava-me em rodas alegres, cercada por gente feliz, roupa colorida, embalada pelas palmas que me acompanhavam. Já quis escrever. Escrevo, na verdade. Sempre que posso. Sempre que esse grito contido precisa escapar um pouco. Também quis dançar. Além do meu quarto. Com outra platéia que não o espelho velho e quebrado.
Mas tive esse sonho maior. Quero o contato com a vida em suas facetas mais sôfregas e também felizes. Quero entender a doença como parte da vida, quero entender o sofrimento em sua totalidade. Tenho esse sonho maior que cresce, que aquece mas que golpeia forte com a mesma intensidade bruta. Estou cevando o chimarrão. Ouço -as entrando em casa. Dividir apartamento, dizem. É muito mais do que isso, insisto. É compartilhar vidas. Dou um sorriso tímido ao vê-las entrando na cozinha. Lembro da antiga casa, da vida na campanha que ficou no coração e na memória. Teus olhos estão vermelhos, uma diz. Sim, meus olhos estão vermelhos; estão cada dia mais vermelhos, a cada ano e a cada ciclo na cidade grande.
Universidade, trânsito, pesquisa, laboratórios, jalecos brancos. Eu me pergunto, o que é, universidade, afinal, e para quem? Você é tão inteligente, vozes acumuladas em minha lembrança. Não. E a revolta dentro de mim cresce. Apenas tive oportunidades. E tive apoio. E me permitiram que sonhasse. Assim como hoje permiti que a menina que dobrou a esquina com meu violão sonhasse.
Doída. Sento-me, escrivaninha à frente. Livrei-me do que me tirava o foco. Dei adeus à música. Abro um livro qualquer dos tantos que estão ali. Quero sentir algo. Bases Anatômicas, Fisiopatológicas e Técnicas da Cirurgia, leio o título em voz alta com segurança. Foco. Concentração. Pense. Leia. Aja. Com p-r-e-c-i-s-ã-o. Serei uma grande médica. Salvarei vidas. Salvarei vidas para que outras meninas não vejam o enterro de suas mães. A promessa volta como fogo consumindo tudo como consumiu-me aos 12 anos de idade, dando adeus à minha mãe naquele caixão preto e sombrio. 
A imagem da menina de trancinhas, dobrando a esquina com meu violão, insiste e persiste. E me pergunto (ainda que não queira perguntar): Por quê? Por que vendi meu violão? O dinheiro sob o meu colchão nesse momento, a representatividade do dragão que tudo traga. Respiro fundo. Calma, pequena. Mas não. É esse distanciamento de mim mesma tanta pressão tanto produtivismo tanta cobrança tanta aparência tanta técnica e ao mesmo tempo tanto amor tanta dedicação tanto sonho tanta vontade de mudança tanto tanto como um pensamento sem regra e sem vírgula. 
Coração que fala,
Num ímpeto levanto-me e corro em direção à porta. Desço as escadas. Saio do prédio e sigo o caminho que a menina percorreu com o meu violão. Não o quero de volta. Mas quero seguir os passos da menina. Pisar na mesma calçada que ela saltitou com seus pézinhos sonhadores. Começo a correr, em poucos minutos sinto-me dispnéica. Aprender a cuidar de outros sem nem ter tempo para cuidar de mim. De vez e sem piedade, a obviedade, o absurdos, os erros, o sistema. Tudo vem à tona. E continuo correndo.
Renúncia. Não precisa ser assim, o tempo todo. E corro cada vez mais, minhas pernas dóem. Quero livrar-me de tantas amarras. Quero ser. Existir. E mudar. Apenas. Basta para uma vida.
Páro de correr. O suor e as lágrimas confundem-se em meu corpo.
Tola. Tola sonhadora: dentro de algumas horas estarei de volta ao meu quarto, banho tomado, café forte servido e uma madrugada de estudos a dentro. 
Algo mudou? 
Talvez;
Com a esperança de uma menina que aprende os primeiros acordes, estou nesse momento olhando para o céu estrelado. E a imensidão que engolfa a todos nós.
Volver.
Com passos lentos subo as escadas, de volta, até o pequeno apartamento.
Resignada ou não, voltei.
Eu sei, mais do que nunca: daqui a alguns anos ainda estarei buscando ser a mulher que meu coração propõe que eu seja. E essa mulher será, também, quizá, médica.
Daqui alguns anos terei outros violões, outras paixões que a vida trouxer. E estarei lutando para não ter que vendê-los. Lutando por um mundo onde o trabalho não esteja acima de tudo, onde teremos os tantos focos que a vida clamar (e não seremos punidos por isso). Propósito maior. O sentido passará a ser outro. Angústia e alívio num uníssono tomam conta do meu coração. 
Respiro. 
Penso. 
No pequeno e escuro quarto, fecho os olhos. O sono e o cansaço quase vencem.
Daqui alguns anos, não sei, se nos organizarmos em um mundo diferente.
Sonho com o dia em que nos uniremos. Vai que.
Daqui alguns anos, em vão ou não, quem sabe, talvez escreverei um texto que começa com: “O dia em que vendi meu violão...”

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Epifanias Wilwarianas no livro Poetas de Pijama



Muito feliz, aqui estou - em mais um dos escassos posts no blog - para contar que na última segunda-feira, dia 28 de janeiro, ocorreu na 40º feira do livro da FURG, o lançamento oficial do livro Poetas de Pijamas. 
O grupo dos Poetas de Pijama surgiu no Facebook (facebook.com/groups/poetasdepijamafurg/) como uma daquelas idéias típicas que se tem numa madrugada de estudos. Estudantes da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), começamos a postar diversos poemas e textos durante as noites. No final de 2012 surgiu a ideia de montar um livro, no total foram 43 poetas de pijama (contando com os integrantes da comissão de seleção e coordenadores). E foram selecionadas 18 ilustrações, 64 poesias e 20 contos e crônicas.
Três textos do Epifanias Wilwarianas ("Mãe, não quero férias!", "You say why and I say I don't know" e "Do chá amargo e dos olhos vermelhos" foram selecionados para compor essa coletânea de produções de jovens escritores (:
Momentos assim me incentivam a escrever mais, mesmo em meio à correria e exigência da medicina.

Segue aqui o link do livro na versão online e gratuita do livro: http://issuu.com/mayarafloss/docs/poetasdepijama



domingo, 20 de janeiro de 2013

Todo o resto, é breve.


De dentro da casa antiga, sentada ao lado da imensa janela, ela observava a menina. Deleita-se observando os contornos difusos da menina, o vestido vermelho, os cabelos soltos. A velha sente orgulho ao ver a menina que delicadamente vai de flor em flor, como numa espécie de ritual em câmera lenta. Cheira, toca e sente mas não ousa arrancar nem mesmo a mais pálida das rosas. 
Minha neta, repete, mentalmente e com vigor, minha neta! Os últimos dias tinham sido difíceis, a dor de cabeça dilacerante, a cegueira avançando. Sabia que não tinha muito tempo. O médico dera esperanças mas nada há como a certeza de um corpo cansado que anseia pelo descanso, enfim. 
Naquela tarde, a vida passara novamente como um filme em suas lembranças. A guerra, os tempos de fome, a fazenda, os filhos. Memórias de cada um dos 87 anos vividos naquele vasto interior descampado. O marido que se fora há um ano. Saudade. Ah, como sentia saudades; ele fora seu melhor amigo, mais amigo do que amante. Sorri, balança a cabeça e volta para o presente num baque. 
A neta ainda está no jardim, brincando, distraída. Com a graça de uma vida inteira, a avó contempla a menina. A cena era bela, destilava os fatos todos. Nascer, desenvolver, morrer. Nem morrer parece mau para este corpo exausto, pensa.
Lá de fora, a neta suavemente abana para a sua abuela.
A menina sorri eternamente. Os sorrisos das crianças é que são eternos, pensa. O resto, é breve. Extremamente breve.